Mal-estar docente
Uma primeira radiografia demonstrou que a discussão sobre trabalho e saúde do professor no país avançou significativamente na última década. Não obstante, prosseguem algumas deficiências sinalizando para o longo caminho a ser percorrido – a sua exposição a temperaturas inadequadas, ruídos, superlotação das salas, cansaço extremo pelas longas jornadas de trabalho, dupla jornada das mulheres, falta de tempo para si e para se atualizarem, angústia pelas exigências sociais em termos de atividades, complexidade das tarefas aliada à falta de recursos, problemas sociofamiliares dos alunos, ritmo de trabalho, multiplicidade de tarefas simultaneamente às posturas desconfortáveis, pouca frequência de pausas, falta de valorização, burocratização das atividades, falta de diálogo com a administração das escolas e expansão dos contratos de trabalho temporários e eventuais.
Conforme Neri, em geral os professores enfrentam estes problemas respondendo com atrasos, faltas, queda da qualidade e desinteresse pelo trabalho, e adoecimento. Um fato intrigante, expõe ela, é que a legislação trabalhista ainda não reconhece como doença ocupacional o estresse laboral e os distúrbios da voz. Somam-se a isso algumas estratégias de resistência que são adotadas pelos professores: um processo de desinvestimento subjetivo e individualismo; a recusa à troca de série, método de ensino e resistência a inovações tecnológicas; atribuição de culpa aos alunos por seu fracasso escolar; desvio de função; licença sem vencimento; uso da família como bode expiatório; recusa para se assumir como professor da escola pública; e evasão ou abandono da profissão.
A partir do estado da arte, foram realizadas entrevistas com professores para conhecer as atividades e condições de trabalho, procurando entender como elas podem afetar a sua saúde, pelos pesquisadores da Fundacentro em colaboração com as confederações sindicais de professores do setor público e do setor privado. Nestas entrevistas, o professor de uma escola estadual de SP relatou: “eu trabalho só no Estado. Já trabalhei em escola particular e no Estado e no município e no Estado. Agora estou com dois cargos no Estado, não com carga horária integral em cada um porque não aguento. Mas tem professores que dão até 64 aulas semanais.” Outros dois professores mencionaram os dilemas em escolas privadas de SP: “tenho 50 alunos na sala de aula. Para mim, é normal ter 50 alunos na rede estadual, mas não na particular” e “é uma jornada estafante demais. São 20 turmas por semana em escola pública”.
Através de apurada revisão da literatura, foi possível estabelecer um consenso que o mal-estar docente é um fenômeno social do mundo ocidental que possui como agentes desencadeadores a desvalorização concomitante às constantes exigências profissionais, a violência e a indisciplina, entre outros fatores, que acabam por promover uma crise de identidade em que o professor passa a se questionar sobre a sua escolha profissional e o próprio sentido da profissão. “Praticamente a totalidade dos trabalhos analisados faz referência ao mal-estar docente, discutindo como ele se manifesta em diferentes contextos do ensino básico, em escolas públicas e em escolas privadas”, conta Márcia.
Riscos
Esse mal-estar passa a se manifestar em sentimentos negativos intensos como angústia, alienação, ansiedade e desmotivação, além de exaustão emocional, frieza perante as dificuldades dos outros, insensibilidade e postura desumanizada. A profissão docente é hoje considerada como uma das mais estressantes, uma profissão de risco, conforme a Organização Internacional do Trabalho (OIT). E, não raro, os professores partem para a fuga de olhar o processo sem se reconhecer nele. Nas mulheres, os principais efeitos do mal-estar são amenorreia, cefaleia, melancolia climatérica, frigidez, anorexia, bulimia, neurose de ansiedade e psicose depressiva.
A opção de ouvir professores de escolas públicas e privadas se mostrou acertada, de acordo com as coordenadoras do estado da arte, para desmistificar a ideia de que somente na escola pública há difíceis condições de trabalho. Serviu ainda para apontar que os múltiplos empregos são assumidos por professores para conseguir um ganho razoável no fim do mês. Mas o mais importante foi evidenciar como as condições nas quais os professores realizam seu trabalho produzem seu adoecimento físico e mental e que eles enfrentam estes problemas de forma individualizada. As autoras reiteram que as pesquisas mostram a necessidade de o poder público construir políticas públicas que enfrentem as suas origens em oposição às políticas que pretendem atingir somente os efeitos, tais como a premiação dos assíduos.
Muitos outros pontos foram analisados pela pesquisa, entre os quais distúrbios vocais, que atingem significativamente os professores que fazem uso da voz como instrumento de trabalho, e a síndrome de Burnout. Esta síndrome vai avançando com o tempo, corroendo devagar o ânimo do trabalhador, que vai se apagando. É uma desistência de quem ainda está lá, encalacrado em uma situação de trabalho que não pode suportar, mas que, concomitantemente, também não pode desistir. O trabalhador arma inconscientemente uma retirada psicológica, um modo de abandonar o trabalho, apesar de continuar no posto. Está presente na sala de aula, mas passa a considerar cada aula, cada aluno, cada semestre como números que vão se somando em uma folha em branco. Os estudos sobre a síndrome em professores a associam a respostas individuais aos estressores interpessoais ocorridos em situações de trabalho. Uma diferença significativa entre o Burnout e o estresse é que este último afeta somente a pessoa envolvida, enquanto o Burnout afeta todos os envolvidos na situação de trabalho e nas relações pessoais, prejudicando não apenas o professor, mas também os alunos e comprometendo todo o processo de ensino-aprendizagem. A alta frequência do Burnout entre os professores brasileiros consiste numa evidência das difíceis condições de trabalho a que eles estão submetidos e, em consequência, as precárias condições de ensino e aprendizagem que ainda estão presentes na maior parte das escolas do ensino básico do país.
Projeto foi estruturado em três ações
A Fundacentro é uma fundação de natureza jurídica de Direito Público que tem por finalidade principal a realização de estudos e pesquisas na área da saúde e segurança do trabalho e a difusão desses conhecimentos. Neste contexto, o projeto “Condições de trabalho e suas repercussões na saúde dos professores na educação básica no Brasil” teve dois objetivos principais. O primeiro foi conhecer as condições de trabalho desses professores em diferentes situações de trabalho, como zona rural e urbana; escolas municipais e estaduais; ensino infantil e/ou fundamental e/ou médio, grandes ou pequenas cidades, em todas as regiões do Brasil. Entendeu-se aqui por condições de trabalho o conjunto dessas condições, materiais ou não, em que o trabalho de um grupo de trabalhadores é exercido e compreende desde as condições contratuais de trabalho e os níveis de remuneração até as características dos locais, as especificidades das tarefas e atividades exercidas. O segundo objetivo foi relacionar as diferentes condições de trabalho com a saúde dos professores.
O projeto foi estruturado em três ações: a produção de um relatório, denominado Estado da Arte, sobre os estudos recentes acerca das condições de trabalho (já concluída); a análise coletiva do trabalho ou no que consiste o trabalho dos professores e no que ele difere conforme as situações em que é praticado (esta etapa foi realizada nas cidades de São Paulo, Salvador e Vitória da Conquista (BA), Teresina, Água Branca, Picos e Luís Correa (PI), Campo Grande, Belém e Porto Alegre; e a publicação e distribuição de livros com os resultados finais do projeto.
Fonte – Jornal da Unicamp - 9 a 22 de novembro de 2009 – ANO XXIV – Nº 447